Pular para o conteúdo principal

mãe!






O mundo está cada vez mais chato. Na verdade, sempre foi. A única diferente é que com a internet ficamos mais visíveis a nossa própria realidade humana.
O mundo era bom quando ele era apenas nosso círculo local de amizades. Ficávamos próximos somente de pessoas conhecidas, que quase sempre compartilhavam da mesma opinião, muito por que a própria comunidade e a geografia local compartilhávamos dos mesmos costumes e opiniões.
Com a internet as fronteiras caíram, e com elas os limites que nos impediam de acessar opiniões e realidades que não eram as mesmas das quais fomos criados ou que concordamos.
Essa introdução que fala um pouco dos tempos de hoje não é o tema central do novo filme de Daren Aronofsky, mas é difícil sair da sessão e não rever todo o conceito de sociedade que trouxe o ser humano a o que ele é hoje: um ser egocêntrico, intolerante, arrogante e mau.

Em mãe! acompanhamos a história da personagem que dá título ao filme, interpretada por Jennifer Lawrence e seu “marido”, vivido por Javier Bardem. Os dois vivem em uma casa afastada, onde ele, um escritor ou poeta, busca inspiração para uma nova obra, enquanto ela trabalha na reconstrução da casa, uma vez que no passado entendemos ter passado por um incêndio. Tudo muda quando eles recebem a visita de um homem, interpretado por Ed Harris.
mãe! não é um filme fácil de assistir. Ele é inquieto, incomoda e causa momentos de desconforto. Mas isso não significa que seja um filme ruim. Muito pelo contrário. Tudo em mãe! é metáfora. E o que é possível falar de mãe! é isso. Uma vez que qualquer informação a mais pode estragar a experiência fantástica que esse filme pode proporcionar. Sendo assim, todo o texto abaixo contém spoilers do filme.



A interpretação

Metáforas, e principalmente, referências bíblicas. Assim, na interpretação mais clara, Bardem faz o papel de Deus, que no início vivia na Terra (a casa deles), com a sua esposa, que podemos entender também como um símbolo de sua inspiração divina ou da própria Natureza (Lawrence). E é pelo olhar dela que acompanhamos toda a história. Enquanto ele, um escritor ou poeta que busca inspiração para uma nova história, ela se ocupa em cuidar da casa, tratar bem seu companheiro e continuar sua reforma. Perceba que mesmo pronta, a casa está em constante mudança.
Quando ele começa a trabalhar em sua nova criação, o Homem surge, e é convidado pelo poeta a entrar e passar a noite. O poeta fica fascinado por ele, passam juntos o tempo tudo e é nítido o encantamento que este o proporciona. À noite, ela acorda com o barulho de um grito e vê o homem passando mal no banheiro e sendo ajudado pelo poeta. Ela também percebe um ferimento na altura da costela, que é encoberto pelo marido. No dia seguinte, a mulher do homem (Michelle Pfeiffer) também visita a casa.
Lawrence fica inquieta com a chegada dos estranhos. Além de intrusos, os visitantes são inconvenientes e não obedecem às regras. Mesmo avisados diversas vezes, os dois invadem um quarto proibido e quebram uma pequena relíquia do poeta. Não o bastante, logo depois os dois fazem sexo sem o menor arrependimento.
A loucura só aumenta e vemos os dois filhos do casal também entrando na casa. Eles se desentendem, brigam, e um mata outro. A história da primeira família do mundo está criada. O homem é Adão, a mulher é Eva e os filhos são Caim e Abel, que confirme conta a Bíblia, um assassina o outro por ciúmes.

O que segue é a própria história da espécie humana até os dias de hoje, e as críticas de Aronosfky são inúmeras. A primeira, para a própria humanidade, que com o passar dos anos apropria-se da casa/planeta, sente-se dona da mesma e no direito de modifica-la ou destruí-la. A segunda, ao personagem de Deus, visto aqui como um ser narcisista e apaixonado pela sua criação a ponto de ser negligente e omisso.
Deus acaba se apaixonando por sua criação, muito em virtude do amor que esta declara a Ele em seus ritos de idolatria. E o que faz da raça humana tão fabulosa, acaba também por torná-la incontrolável. O mesmo homem que pode ser afável, caridoso, honesto e bondoso, é da mesma raça daquele que escraviza, mata, impõe muros e oprime minorias. Como pode?
A bondade de Deus também o torna displicente e o cega aos riscos que sua criação apresenta. O então livre arbítrio, cedido aos humanos, e que provavelmente é um dos fatores que traz esse fascínio a nossa espécie, é o mesmo que nos torna autodestrutivos.
O que antes eram brigas em família e desrespeito às regras da casa, tornam-se então ofensas, guerras, mortes e extermínios. Em certo momento, a editora que publica e distribui a obra do poeta (lê-se a igreja evangelizando a Bíblia), é vista executando pessoas cobertas com capuz na cabeça. A representação é clara às inúmeras minorias que foram exterminadas por não concordarem com suas regras e imposições, e que como podemos ver, não são as mesmas, nem para Deus, nem para o Planeta e nem para a Natureza.
Os ritos religiosos começam então a tomar interpretações diferentes das que o poeta escrevera. Assim, cada grupo entende a obra conforme sua realidade, e da mesma forma que Caim enciumava Abel, esses grupos, criados a partir de um mesmo vínculo, ficam cada vez mais distantes e radicais.

As pessoas tornam a casa um lugar insuportável. Tanto que em seu ápice catártico a Mãe é espancada a socos e chutes. Desesperada e sem opções, a única saída que ela encontra é destruir-se a si própria e a casa, ateando fogo em tudo. Carbonizada, o poeta pede a sua inspiração uma nova chance para tentar, e pelo seu amor a ele, ela cede novamente seu coração, que uma vez “reesculpido” pelo poeta, torna-se a matéria-prima para a reconstrução da casa, da própria natureza e dela mesma. No entanto a “nova” Mãe não é mais a mesma, uma nova pessoa/simbolo desperta. O reinício não é então um recomeço, mas um novo começo, baseado em uma nova tentativa que provavelmente nada terá – espero – em comum conosco.

A mensagem nos diz: somos um erro divino, uma tentativa de vida de um criador negligente, que por nos amar demais (ou por amar ser amado), teve o erro fatídico de confiar em uma espécie egoísta e manipuladora. Uma vez que, ao nos apropriamos de um planeta que não é nosso, condenamos todos a nossa volta ao mesmo fim.
É curioso ver que antes do homem entrar na casa, a convivência entre o poeta e sua inspiração, por mais perfeita que fosse, não era o bastante para Deus, que talvez buscasse alguém para “quebrar a rotina”, que tivesse seu próprio caminho e convicções. Ele chega a grita para ela: “Esta casa precisa de vida!”.
A paixão do poeta por sua criação é tanta que este entrega seu próprio filho a eles. A justificativa: “eles querem vê-lo”. A mãe, desconfiada, sabia do risco e se recusa, em vão, a entregá-lo. O final dessa história todos já sabem.
O fanatismo é apenas um dos males que assola a humanidade. Nos tempos atuais, as inúmeras interpretações equivocadas (ou a preguiça em entendê-las) também agregam a intolerância do nosso mundo. Mas no fundo, não há como negar que a humanidade foi construída por valores errados, que moldaram ela para aonde hoje estamos.

Vivemos em um mundo “perfeito” sem se importar que bilhões, a palavra é bilhões, passam fome. Que bilhões não tem o mínimo para viver decentemente. Que a metros da nossa casa existem pessoas que precisam demais de ajuda e que são ignoradas. Adoramos julgar e acusar os outros. Somos intransigentes, defendemos os valores nossos, mas não somos capazes de compreender os valores dos demais. Achamos mais importante venerar a um Deus, aos que estão ao nosso redor. Para Ele, amor, fé e doação. Para o próximo, pena e dó.

A cegueira do poeta em tolerar nossas falhas, é a mesma que temos ao não enxergar o quanto somos prejudiciais ao planeta. E não há dúvidas de que o melhor para o mundo é a nossa própria extinção. Somos insustentáveis, nossa natureza não permite a convivência igualitária, nossa raça é arrogante, dona de si e egoísta. E isso é autodestrutível. Não somos os donos desse planeta, e acreditar que viemos parar aqui por uma ação divina só é o primeiro erro egocêntrico, dos inúmeros que já cometemos.




Comentários

  1. Não tinha entendido nada desse filme, mas depois de ler achei perfeito, muito bom adorei a menssgem do filme.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O amor é a flor da pele e eterno!

“Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-o de lama e lá deixavam o segredo para sempre” A frase acima é dita por Chow Mo-Wang a seu amigo Ping, no filme Amor à Flor da Pele (2000), do diretor chinês Wong Kar-Wai, em uma das histórias de amor mais bem contadas do cinema, segundo muitos críticos. Kar-Wai consegue em seu filme dedicar ao amor a tradução que talvez mais o represente: a eternidade, ou o popularmente, até que a morte nos separe. Na história, conhecemos sr. Chow e a srta. Li-zhen Chan, os dois se mudam para Hong Kong da década de 60 com seus respectivos cônjuges no mesmo dia, onde ocupam quartos vizinhos de um mesmo edifício. Em comum, além do lugar onde vivem, os dois tem a ausência total dos parceiros, e posteriormente uma descoberta: seus cônjuges estão tendo um caso entre si. A descoberta aproxi

Volver

Falar de Almodóvar nunca é fácil. Uma das características do cineasta espanhol é seu atrevimento e coragem em propor nas telas seus conceitos e ideias. E é de atrevimento e coragem que se faz esse texto, ao tentar transpor em palavras um pouco de um dos filmes que mais aprecio em sua filmografia: Volver. Volver conta a história de Raimunda (Penélope Cruz), mulher casada e com uma filha de 14 anos, que ainda tenta superar a morte de sua mãe, enquanto cuida da tia. A personagem de Cruz, inclusive, é quem carrega o filme por completo e dá alma à trama. Cada cena da atriz renova o filme, que composto por um excelente roteiro, nunca deixa a história se esvair ou perder força. Não à toa, em muitas vezes vemos Penélope enquadrada ao centro da tela, tomando para si toda a sustentação do longa. Traduzindo essa percepção para a personagem Raimunda, é assim que ela também encara a sua vida. Uma vez que, mesmo com um casamento complicado, dificuldades financeiras crescentes e um passado

Divertida Mente (Inside Out) é uma viagem fantástica rumo ao autoconhecimento

O primeiro filme da Pixar, Toy Story, completa 20 anos esse ano. Toy Story foi mais do que o primeiro filme produzido em computação gráfica do cinema, a história de Woody e Buzz Lightyear representou a entrada da Pixar no segmento de animação e uma revolução no modo de fazer desenhos. Em vinte anos foram quinze filmes produzidos. Nenhum deles pode ser considerado um filme ruim, e no mínimo três deles, obras primas. E Inside Out, ou Divertida Mente no título em português, é um deles. A Pixar conseguiu criar um padrão tão alto de qualidade que qualquer filme mediano produzido por eles pode ser considerado um Dreamwor..., digo, um trabalho ruim. O estúdio reúne sete Oscars de melhor animação em nove disputados, sendo que em duas oportunidades disputou na categoria de melhor filme - Up! e Toy Story 3.                 Divertida Mente segue a linha dos filmes citados. É Pixar em sua melhor forma, abusando de originalidade e criatividade. Com a direção de Pete Docter, o mesmo d